quarta-feira, 7 de janeiro de 2015

Sapere Aude!



Quero iniciar este blog relatando brevemente minha primeira experiência de leitura em sala de aula com um texto propriamente filosófico. Para isto, tomei como cobaias (no bom sentido!) alunos do terceiro ano do ensino médio. Surpreendentemente, depois de apresentar-lhes o texto, muitos deles escreveram belas resenhas originais - e sublinho isto porque atualmente o Google é o maior parceiro dos estudantes preguiçosos. Por outro lado, a resenha de uma aluna relacionou a facilidade de informações que a tecnologia digital nos fornece (Google é somente um dentre outros dispositivos) com a falta de coragem de pensar por conta própria. Ao inspirar-se em Kant, e relacionando-o com aspectos da atualidade, ela cometeu um ato filosófico! Suponho que estes mesmos alunos tiveram um bom acompanhamento de leitura e escrita com os professores de português e matérias afins - mais uma razão para compreender porque as disciplinas escolares estão sempre interligadas, o que muitos professores ainda têm dificuldade de enxergar. Com o texto em mãos, muitos deles devem ter se assustado à primeira vista com a complexidade que enfrentariam na densa leitura; no entanto, o que é mais valioso na aventura do conhecimento, tanto filosófico como científico, senão a superação de desafios? Lembro-me há alguns anos de um professor de filosofia da faculdade dizer assim para a sala: "Estudar filosofia não é uma tarefa simplesmente fácil e agradável; bem que eu gostaria de estar agora numa cadeira de praia descansando."

O texto abordado foi "Resposta à Pergunta: O que é o Iluminismo?", de 1784, escrito pelo prussiano (súdito do antigo reino que originou a atual Alemanha) Immanuel Kant. O mesmo foi publicado em uma revista (coletânea de artigos) chamada "Berlinischen Monatsschrift" como resposta à pergunta: "Que é o Iluminismo?". Esta pergunta estava contida em um artigo publicado anteriormente na mesma revista por um certo Sr. Zöllner, pastor luterano, sobre o valor da sanção da religião para o matrimônio. Kant, então, toma o desafio de respondê-la. Estou longe de realizar uma exposição detalhada e cansativa para vocês, pois minha intenção aqui consiste em explicar livremente o espírito desse texto do século XVIII para os nossos tempos.

Sem a necessidade de rodeios literários, Kant diretamente inicia o texto dando ao leitor uma definição precisa do iluminismo (ou esclarecimento, usarei aqui ambos os termos, pois é outra possível tradução ao termo alemão Aufklärung):

“O Iluminismo é a saída do homem da sua menoridade de que ele próprio é culpado. A menoridade é a incapacidade de servir do entendimento sem a orientação de outrem.” (p. 9)

Se o iluminismo - isto é, o esclarecimento ou a luz da razão - retira o homem da menoridade, através do uso pleno e livre das suas faculdades racionais, haveria de existir, por oposição, uma maioridade da razão. Ser menor não significa, como nas leis, ser incapaz em suas faculdades por causa da idade; a menoridade significa, independentemente da idade, o seu entendimento estar submetido à orientação de outrem: pai ou mãe, padre, professor, patrão, instituição, empresa etc. Isso significa que meu próprio entendimento é sempre dependente do pensamento de um outro, e este outro pensa sempre por mim. Portanto, eu nunca penso por conta própria. Porém, a intenção do iluminismo é a ruptura com essa submissão, está em libertar-se da menoridade com o pleno e livre uso da razão. É um projeto bastante ambicioso se extrapolarmos isto a toda a humanidade. Nos tempos em que vivemos será que não é esta a bússola que buscávamos? "Vivemos nós agora numa época esclarecida?", pergunta Kant, "(...) Não. Mas vivemos em uma época de esclarecimento [Aufklärung]." (p. 16) O processo de esclarecimento, por ser progressivo, é inacabado, e é esta mesma bússola que traçou o caminho histórico-evolutivo a qual chamamos de modernidade. Será que o esclarecimento tanto individual como coletivo, que se tornou o ideal progressivo da ciência, da educação e de muitas outras áreas, trouxe benefícios a todos? A toda a humanidade? Deixo este questionamento em aberto para vocês...

Embora os termos heteronomia e autonomia não apareçam neste texto, mas nas obras dedicadas à filosofia moral, eles são de grande utilidade para compreendermos em Kant o que é o esclarecimento. Lembrando que o esclarecimento, como aparece neste texto, refere-se somente ao campo intelectual, pois deve-se libertar o entendimento da orientação dos outros, isto é, somente o pensamento e não a ação do sujeito que é livre. "(...) racionai tanto quanto quiserdes e sobre o que quiserdes, mas obedecei!" (p. 17), dizia o rei da Prússia Frederico, o Grande; esta citação explica que a liberdade estava restrita ao pensamento e não na ação dos homens, campo da moral e da política. Mas porque não extrapolar o esclarecimento para o campo da ação? Isso ocorre quando passamos para a filosofia moral. Explico. Pela etimologia, sabemos que a hetero-nomia nada mais é do que a norma externa, diferente (hetero), que é aplicada aos sujeitos, ou seja, a mim; por isso, as leis e os costumes de um povo são sempre heterônomos. A auto-nomia, por outro lado, é a norma interna, própria (auto) que é aplicada, por mim mesmo, a mim mesmo; em outras palavras, são regras morais universais que atribuo a mim mesmo, as quais, de certo modo, são o uso da razão tanto em minhas ações como em meus pensamentos. Por exemplo: atribuo a mim, como regra universal, que roubar é errado por alguma razão, e isso vale tanto para a minha pessoa como para qualquer outro sujeito, e caso eu abra uma exceção estarei sendo contraditório com a norma que eu mesmo formulei. Este é um dos princípios do imperativo categórico. Para concluir, posso relacionar, por analogia, que no campo do pensamento o sujeito pode estar na menoridade ou na maioridade; no campo da ação o sujeito pode estar na heteronomia ou na autonomia.

Porém, uma dúvida permanece. Por que é inferior viver sob a menoridade? Qual é o problema em viver tanto pelo pensamento como pela ação sob a orientação de alguém? Nós nascemos, crescemos com o auxílio de tutores (pais ou responsáveis) que nos nutrem e fornecem as normas para a vida social: o que e como comer, vestir-se, estudar, andar, que emprego escolher, que tipo de lazer optar, que estudos seguir, que marido ou esposa escolher. Ora, estes tutores são importantíssimos para o desenvolvimento humano, pois sem eles nem o ser humano nem a sociedade existiriam. Se viver sob o comando de outros é tão importante, por que Kant clama para que se saia da menoridade? A resposta talvez esteja não tanto em destruir a autoridade em todas as suas formas, mas em relativizar o seu poder; em outras palavras, o tutor deveria ter o poder de me ordenar o que preciso somente enquanto sou incapaz de raciocinar e de agir por conta própria. Após o período da infância, a qual todos nós a ultrapassamos, o sujeito deve ser o único responsável pelos seus pensamentos e ações.

É interessante notar que Kant não responsabiliza o sistema ou o mundo exterior pelas causas da permanência dos homens na menoridade (“O sistema é foda”, diria o Capitão Nascimento diante da corrupta sociedade brasileira), pois o próprio sujeito seria o culpado pela sua menoridade, através do comodismo (a zona de conforto, diríamos atualmente) e da falta de esforço em se empoderar de suas próprias capacidades racionais. Por fim, cito um trecho que não deixa de ser espantosamente atual: “É tão cômodo ser menor. Se eu tiver um livro que tem entendimento por mim, um diretor espiritual que tem em minha vez consciência moral, um médico que por mim decide da dieta, etc., então não preciso de eu próprio me esforçar.” (p. 10)

Aqui está a lição de Kant para os nossos tempos, já decorridos mais de duzentos anos: em um sentido amplo o esclarecimento nada mais é do que a ruptura com a autoridade portadora da voz heterônoma, e a progressiva libertação do ser humano pela autonomia racional, tornando-nos responsáveis pelos nossos próprios pensamentos e ações quando começamos a nos servir de nossas próprias faculdades. Sapere Aude! Ousa saber! Eis o lema do esclarecimento.

Bibliografia:

Todas as citações entre aspas foram extraídas de KANT, I. A Paz Perpétua e Outros Opúsculos. Trad. de Artur Morão. Lisboa, Portugal, 2009.

Textos online disponível em:

http://ensinarfilosofia.com.br/__pdfs/e_livors/47.pdf

http://www.lusosofia.net/textos/kant_o_iluminismo_1784.pdf